Domingo, 28 de dezembro de 2025
Por Redação do Jornal O Sul | 28 de dezembro de 2025
Diz-se que em coração de mãe cabe todo mundo, expressão que tenta definir a infinita capacidade de acolhimento das mulheres. De certa forma, é assim que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enxerga o Orçamento Geral da União. A diferença é que os limites da peça orçamentária são bastante tangíveis, mas o governo faz questão de esgarçá-los como se eles não existissem.
Com exceção do superávit pontual registrado em 2022, resultado do calote nos precatórios patrocinado pelo então presidente Jair Bolsonaro, o País não registra saldo positivo entre receitas e despesas há mais de dez anos. Isso não se deve a problemas pontuais, mas à dinâmica do gasto público, que cresce em ritmo consistentemente acima da arrecadação.
Para reverter esse quadro e conquistar o respeito do mercado financeiro, o governo Lula propôs um novo arcabouço fiscal e apostou todas as suas fichas no aumento de impostos, uma política que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, preferiu chamar de recuperação de receitas, para abrandar seus efeitos. Em relação às despesas, no entanto, o governo foi bem mais indulgente.
As chances de que a estratégia funcionasse já eram baixas desde o início, tendo em vista a resistência do Congresso em aumentar impostos, mas, para piorar, o governo decidiu retirar os pisos da saúde e da educação do alcance do arcabouço fiscal, mantendo sua vinculação com as receitas, e tornar lei a política de valorização do salário mínimo.
A bondade custou caro. De um lado, se a arrecadação subisse, as despesas com saúde e educação também aumentariam. De outro, boa parte das aposentadorias e pensões, bem como seguro-desemprego, abono salarial e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros benefícios, está vinculada ao salário mínimo. As despesas diretamente ligadas ao piso consomem cerca de 30% das despesas primárias do governo.
Era óbvio, portanto, que essas medidas iriam abalar as bases do arcabouço fiscal. Quando se retiram tantas despesas do alcance da âncora, ocorre uma pressão adicional sobre o conjunto das demais, sobretudo as discricionárias. Investimentos, gastos de custeio e emendas parlamentares, na prática, precisam subir menos ou até cair para que uma coisa compense a outra.
O que aconteceu era previsível: toda e qualquer despesa avaliada como inesperada passou a ser excluída das regras fiscais. Foi assim com os precatórios, os investimentos de estatais no Programa de Aceleração do Crescimento, a ajuda às enchentes no Sul e às queimadas no Norte e Centro-Oeste, o apoio a exportadores pelo tarifaço e o ressarcimento pelos descontos ilegais em aposentadorias e pensões.
O exemplo do Executivo ensinou aos demais Poderes. O Congresso retirou R$ 30 bilhões em investimentos em defesa do alcance do limite de despesas e da meta. O Judiciário não ficou atrás e, para garantir o pagamento de penduricalhos, decidiu que R$ 1,3 bilhão em despesas pagas com receitas próprias ficariam fora das regras fiscais.
Mesmo todas essas exceções não foram suficientes para o governo cumprir as metas fiscais de 2025 e 2026, e a decisão foi mudá-las para torná-las ainda mais modestas. Não adiantou, e o governo conseguiu arrancar do Congresso uma autorização para perseguir o limite inferior dessas metas, em vez do centro.
Tudo isso permitirá ao governo Lula chegar ao fim de 2026 batendo o bumbo de que cumpriu as metas fiscais e ainda registrou um superávit no último ano de seu mandato. Como o tema é árido, pode funcionar como discurso eleitoral. Mas a dívida, ao contrário dos políticos, não mente.
O arcabouço nunca foi um fim em si mesmo, mas um instrumento para conter a trajetória da dívida. Logo, de nada adianta cumprir as metas fiscais, se a trajetória da dívida bruta na proporção do PIB não para de subir. Entre janeiro de 2023 e outubro de 2025, a dívida bruta do governo geral subiu nada menos que sete pontos porcentuais, de 71,4% para 78,4% do PIB.
Esse avanço é fruto das escolhas, conscientes ou não, do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que fizeram do arcabouço fiscal uma âncora inócua, com vida ainda mais curta que o falecido teto de gastos. O ajuste será doloroso e inevitável em 2027. (Opinião/O Estado de S. Paulo)