Sexta-feira, 20 de junho de 2025
Por Redação do Jornal O Sul | 11 de maio de 2023
O tiro acidental que vitimou um caçador no interior de São Paulo não foi um caso isolado. Embora não haja estatística oficial, a reportagem do Estadão apurou outras dez mortes com o mesmo padrão desde 2019 no Brasil. Permitida pelos órgãos ambientais apenas para controle de uma espécie invasora, a caça a esses animais movimenta um negócio que vai da venda de armas e munições ao esporte e turismo, com safáris de caças organizados por profissionais.
A Confederação de Tiro e Caça do Brasil (CTCB) oferece safáris para caçada ao javali com acampamento completo para os caçadores. Em seu site, a entidade pede a indicação de fazendas com animais que possam ser abatidos por estarem incomodando e dando prejuízo aos donos. “Estamos precisando de fazendas para as caçadas. Precisamos da aprovação do dono da fazenda, endereço completo com as coordenadas, bem como as condições para os caçadores”, diz, em sua página oficial.
Em outro ponto, a entidade convoca caçadores para abater javalis. “Vamos unir uma grande tribo de caçadores, em vários Estados, que desejam praticar o esporte da caça.” A confederação reúne mais de 130 clubes de caça e tiro no país, dos quais 56 ficam no Estado de São Paulo. Na internet, grupos de caçadores exibem javalis mortos como troféus e oferecem os serviços para fazendeiros. Alguns sites e páginas em redes sociais oferecem as melhores armas para a caçada, entre elas fuzil 7.62 e a carabina calibre 357.
A página “Caçadores de Javali”, grupo privado no Facebook, tem 148,4 mil seguidores. Já a “Aventuras no Mato” exibe vídeos de caçadas. Em outra página da rede social, “Caça do Javali”, grupo público com 15 mil membros, caçadores de todo o Brasil expõem os resultados de suas caçadas.
De acordo com Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, como regra, a caça no Brasil é proibida pela Lei 5.197/67, mas existe uma permissão de caça para abate de espécies invasoras, sob a supervisão do Ibama. “O ponto é que esta caça no Brasil foi bastante desregulada na era Bolsonaro. O registro de arma no Exército para essa caça e a compra de munições prescindem de qualquer interlocução com o Ibama. Alguém registrado pode comprar armas e munições por anos sem ter de comprovar que estes itens foram de fato usados para combater espécies invasoras.”
Além disso, segundo ele, os requisitos técnicos para concessão de registros de caçador não preveem um treinamento distinto do que é dado para defesa pessoal, “só que as necessidades são totalmente distintas, pois em muitos casos estes caçadores irão atuar e se deslocar com outras pessoas armadas e, inclusive, muitas vezes fazendo disparos usando veículos em movimento, como plataformas de tiro, o que também aumenta os riscos de acidentes.”
O especialista acha que é preciso controlar esta atividade, exigindo revalidações para a comprovação dos abates. “Acreditamos haver um conflito entre o interesse ambiental de controle da espécie invasora e o interesse de caçar por prazer ou esporte. Se de um lado há interesse de reduzir a espécie, da parte dos caçadores, em muitos casos, ter mais animais em mais Estados aumenta a possibilidade de atividade da categoria, como já foi documentado em várias ocasiões.”
O Ibama foi questionado sobre as colocações feitas pelo especialista, mas ainda não deu retorno. A Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado informou que os proprietários rurais que constatarem a presença de javalis em suas propriedades devem comunicar aos órgão municipais de agricultura e meio ambiente, ou à própria secretaria.
O Exército informou que o caçador deve estar vinculado a uma entidade de tiro voltada à caça, como clubes, associações, federações de caça que se dedicam a essas atividades e estejam registradas no Comando do Exército. Disse ainda que faz parte do plano anual de fiscalização de produtos controlados das Regiões Militares fiscalizar essas entidades de tiro.
A aquisição de munição para armas de uso permitido por colecionadores, atiradores e caçadores é condicionada à apresentação pelo adquirente do Certificado de Registro de Arma de Fogo no Sistema Nacional de Armas (Sinarm) ou no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), conforme o caso, ficando restrita ao calibre correspondente.
Os atiradores e os caçadores podem adquirir, no período de um ano, até 600 unidades de munição para cada arma de uso permitido registrada em seu nome, não podendo ultrapassar esse limite. Todas as munições adquiridas são controladas por meio do Sistema de Controle de Vendas e Estoque de Munições (Sicovem). O Exército informou ainda que a situação atual poderá ser modificada com a edição de novo decreto que regulamentará a Lei 10.826 (lei da arma de fogo), que é objeto de debate por um grupo de trabalho criado por decreto.
Sobre a falta de interlocução com o Ibama, o Exército informou que cada órgão tem atribuições específicas na questão das caçadas ao animal invasor.
Autorização passou a ser online
De acordo com o Ibama, o javali (Sus scrofa), nativo da Europa, Ásia e norte da África, foi introduzido no Brasil a partir da década de 1960 para criação e consumo da carne. O animal exótico, quase sem predadores naturais, se transformou em uma praga, reproduzindo-se e formando grupos que atacam lavouras, assoreando cursos d’água e destruindo a vegetação nativa.
Atualmente, com a criação proibida, o animal tem alta população em 15 Estados brasileiros, com predominância nas regiões sul, sudeste e centro-oeste.
Segundo o Ibama, dos 5.570 municípios brasileiros, 1.536 já registraram ocorrências com javalis. Não houve registros apenas nos Estados de Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte, Amapá e Roraima. Em 2013, o Ibama autorizou o controle da espécie através do abate, recomendando cuidados para evitar que animais similares da fauna silvestre brasileira, como o cateto e a queixada, não fossem abatidos por engano.
Na gestão do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o órgão passou a autorizar o manejo de forma online.