Quarta-feira, 18 de junho de 2025
Por Redação do Jornal O Sul | 20 de março de 2022
Em agosto de 2010, o então soldado da PM Carlos Eduardo Maleval Fernandes foi condenado a oito anos de prisão pelo crime de comércio ilegal de munição de uso restrito. O policial havia sido preso com 895 cartuchos de calibres 9mm, .40 e 380 que seriam vendidos a traficantes na Zona Norte do Rio.
Dois anos depois, a sentença foi mantida em segunda instância. No final de 2020, no entanto, o ex-PM entrou na Justiça com um pedido de Revisão Criminal: a defesa de Fernandes argumentava que um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e regulamentado pelo Exército havia beneficiado o condenado.
Em janeiro de 2021, o Tribunal de Justiça do Rio diminuiu a pena de Maleval sob o argumento de que todos os cartuchos que o réu venderia passaram, por conta das mudanças promovidas pelo governo, a ser de calibre permitido. Sua pena diminuiu para seis anos de prisão.
Um levantamento feito pelo jornal O Globo em acórdãos publicados pelos Tribunais de Justiça (TJ) do Rio, de São Paulo e de Minas Gerais revela que Fernandes foi somente um dos 351 condenados por porte ou posse ilegal de armas nesses três estados que conseguiram diminuir suas penas, em segunda instância, graças ao decreto editado pelo governo Bolsonaro em 2019.
A medida aumentou o número de calibres permitidos no País. Desse total, 201 apenados — ou 57% — também são acusados pelo Ministério Público de integrarem organizações criminosas, como milícias, facções do tráfico de drogas ou quadrilhas de traficantes de armas e especializadas em roubos de cargas e bancos.
Para fazer o levantamento, O Globo analisou todos os acórdãos publicados pelos três tribunais que citam a Portaria 1.222/2019, do Exército. A publicação regulamentou o Decreto 9.847/2019, editado por Bolsonaro, que aumentou a potência de armas que são consideradas de uso permitido no Brasil.
Na prática, a medida passou a autorizar a cidadãos comuns artefatos que antes eram de uso restrito das polícias militares, da Polícia Federal e do Exército. Segundo a portaria do Exército, calibres como 9mm, .40 e .45 passaram a ser considerados de uso permitido.
Presos livres
A medida teve repercussão no Judiciário, afinal o Estatuto do Desarmamento, de 2003, prevê penas maiores para crimes que envolvam armamentos de uso restrito. Por exemplo, o crime de porte ou posse de arma de uso restrito prevê penas de três a seis anos de prisão. Já para porte de arma de uso permitido, as penas são de dois a quatro anos. E, nos casos de posse, quando a arma é encontrada dentro da casa do réu, a punição é ainda menor, de um a três anos.
Um estudo publicado pelo Ministério Público de São Paulo analisou as consequências do decreto: “todos aqueles acusados pela prática do crime do art. 16 da Lei 10.826/2003 (posse ou porte de arma de fogo de uso restrito) e cujo objeto do crime, a arma de fogo, tiver sido rebaixado da categoria de uso restrito para de uso permitido, serão imediatamente beneficiados pelo novo Decreto”. Como, no Brasil, a lei retroage para beneficiar o réu, até processos com trânsito em julgado foram impactados. O levantamento identificou condenados por crimes cometidos desde 2006 que tiveram penas reduzidas — caso do ex-PM Fernandes.
Entre os beneficiados pelo decreto em Minas, São Paulo e Rio, 103 (29%) conseguiram, além de diminuírem suas penas, abrandar o regime prisional — sendo que 52 deles passaram do semiaberto e do fechado para o regime aberto, o mais brando.
Um deles foi José Carlos Silva, segurança de uma casa de shows no Rio, preso em 2018 com uma pistola 380, de calibre permitido, e munição .40, até então restrita. Em 1ª instância, o réu foi condenado a cinco anos de prisão em regime semiaberto por dois crimes: porte de arma de uso permitido — dois anos — e porte da munição de uso restrito — três anos. Após o decreto, a 7ª Câmara Criminal diminuiu a pena para dois anos, pois todo o material apreendido passou a ser de uso permitido. Com a redução, o regime para cumprimento da pena passou para aberto.
O relator do caso, desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto, criticou o decreto na decisão que beneficiou o condenado. Segundo ele, o decreto “em sua gênese legitima a ação de grupos paramilitares, como milícias, pretendendo em sua motivação ideológica transferir ao ‘cidadão de bem’ o ônus da defesa armada de sua segurança, legando à esfera privada um poder/dever do Estado”.