Segunda-feira, 18 de agosto de 2025
Por Redação do Jornal O Sul | 17 de agosto de 2025
Com mais de 20 anos de existência num país onde as políticas públicas têm história errante, o Bolsa Família é um robusto programa de transferência de renda, uma marca já integrada ao imaginário nacional e uma força de irresistível apelo eleitoral – atributos que costumam converter críticas em crime de lesa-pátria. Mas, felizmente, não têm faltado estudos sérios destinados muito mais a aperfeiçoar o programa do que questionar sua existência. O mais recente deles, realizado por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), toca numa novidade: os efeitos do Bolsa Família sobre o mercado de trabalho mudaram. Para pior. Segundo o estudo, para cada duas famílias que recebem o auxílio, uma sai da força de trabalho.
Até aqui não foram poucos os críticos que, por intuição ou preconceito, diziam que o Bolsa Família estimularia a preguiça e a desocupação. Com a longevidade de um programa pensado como rota de transição para que cidadãos desassistidos pelo Estado pudessem se estabelecer economicamente, e a partir daí prosperar por conta própria, tornou-se comum a ideia de que, no fundo, o Bolsa Família desincentiva o trabalho. Tratase de uma versão mal contada da história. Até 2019, vários estudos mostraram que, no geral, o programa não afetava negativamente a oferta de trabalho. Enxergou-se, inclusive, um efeito positivo entre as mulheres.
Os dados apresentados agora pelo Ibre mostram um impacto diferente do que se avaliava antes. O fenômeno é resultado do aumento significativo do valor do benefício (que mais que triplicou de 2019 a 2023, passando de cerca de R$ 190 para R$ 670) e do alcance do programa (que saltou de 14 milhões para 21 milhões de famílias beneficiárias). Essa dupla tendência contribuiu, segundo os pesquisadores, para reduzir a ocupação e a participação de alguns grupos no mercado – sobretudo os homens do Norte e do Nordeste –, ao mesmo tempo que levou ao aumento generalizado da informalidade: brasileiros de todas as regiões tendem a evitar o emprego formal quando têm acesso aos benefícios. Em outras palavras, foge-se da formalidade a fim de preservar o auxílio do Estado.
Quando criado, em 2003, o Bolsa Família tinha outra cara: um custo mais baixo, um alcance bem mais reduzido e um benefício mais modesto. Começou com R$ 4,3 bilhões de orçamento (ou pouco mais de R$ 14 bilhões em valores atualizados). Em 2017, eram R$ 35 bilhões. Para 2025, seu orçamento beirou eloquentes R$ 170 bilhões – sem esquecer os muitos outros programas sociais, como Pé-de-Meia, Minha Casa Minha Vida, tarifas sociais do saneamento e da energia elétrica, cisternas, Auxílio Gás, Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros. Este último, aliás, também gera distorções. Benefício concedido a idosos a partir de 65 anos e pessoas com deficiência, o BPC, segundo especialistas, estimula a informalidade, já que é possível receber um salário mínimo nessa idade sem nenhuma contribuição à seguridade social.
Tamanhos gigantismo e generosidade, contudo, não deixaram de legado ao País o fim da extrema pobreza e a redução da pobreza. De acordo com a economista Laura Müller Machado, do Insper, aplicando os critérios de elegibilidade e valor de benefícios do Bolsa Família atual na renda da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2023, o orçamento necessário para erradicar a pobreza teria de ser de R$ 76 bilhões anuais. Conclusão: gastamos com Bolsa Família mais que o dobro do valor necessário caso tivéssemos focalização perfeita e maior eficiência do gasto. E focalização perfeita, lembra ela, requer conhecimento da renda correta dos beneficiários, algo desincentivado pelo próprio Bolsa Família.
Pôr luz sobre os dados da informalidade pode ajudar no aperfeiçoamento do programa – sem dogmas e preconceitos de lado a lado. Hoje o País só tem conhecimento do aumento da renda quando ela ocorre pelo mercado de trabalho formal, pela Previdência e pelo BPC, por exemplo. E, depois, a lei é aplicada só aos formais, e não aos informais. Trata-se de um evidente incentivo à informalidade. E assim celebramos a saída de pessoas do Bolsa Família quando vão para o mercado formal de trabalho (cerca de 1 milhão de famílias, segundo o governo anunciou em julho), enquanto outros milhões escondem-se na informalidade para seguirem recebendo benefícios. (Opinião/O Estado de S. Paulo)