Quarta-feira, 16 de julho de 2025

Grande estrategista? Criminoso de guerra? Legado de Kissinger reflete as contradições da diplomacia dos Estados Unidos

“Um país que exige perfeição moral em sua política externa não vai conseguir nem perfeição nem segurança”. A frase escrita por Henry Kissinger em um artigo de 1990 na Foreign Affairs talvez seja a que melhor explique o pensamento do homem que comandou diretamente a diplomacia dos EUA nos anos 1970, mas cuja sombra jamais deixou o Departamento de Estado e a Casa Branca até sua morte, na noite de quarta-feira (29), aos 100 anos. Para trás, deixa um legado contraditório, que se confunde com o papel dos Estados Unidos no mundo.

Décadas antes de Joe Biden chegar à Casa Branca e declarar a China o maior competidor (ou rival) de Washington, Kissinger costurou uma aproximação entre os dois países, idealizada por Richard Nixon, celebrada como uma das maiores vitórias diplomáticas do século XX. A assinatura do Comunicado de Xangai, em 1972, não oficializou os laços entre as nações, mas plantou as bases da política de ambiguidade estratégica pela qual EUA reconhecem que há apenas um governo chinês, ao mesmo tempo em que mantêm relações com Taiwan, incluindo uma robusta ajuda militar.

A “amizade” se manteve mesmo após estar oficialmente longe da Casa Branca. Kissinger ajudou muitas empresas a entrarem no mercado chinês. Em julho, dois meses depois de completar 100 anos, ele esteve em Pequim, onde se encontrou com o presidente Xi Jinping com uma recepção normalmente destinada a chefes de Estado. Na ocasião, Xi disse que “as relações sino-americanas estariam sempre ligadas” ao nome de Kissinger.

O legado de Kissinger foi celebrado ainda por seu papel na elaboração dos primeiros acordos de controle de armas nucleares estratégicas entre EUA e União Soviética — o SALT I, de 1969, e o SALT II, de 1979 — e pelo no ato que lhe rendeu um (contestado) Nobel da Paz, em 1973: a negociação do acordo para pôr fim à participação americana na Guerra do Vietnã.

Crimes de guerra

Apesar de apresentado como apaziguador e construtor de pontes, Kissinger tem uma longa lista de acusações de massacres, violações de direitos humanos e de acobertar ditadores. Um de seus principais críticos, o jornalista e escritor Christopher Hitchens, morto em 2011, enumerou alguns desses crimes em seu livro “O Julgamento de Henry Kissinger” (2001), ao mesmo tempo em que lamentava o fato do personagem de sua obra jamais ter enfrentado a Justiça por seus feitos.

A decisão de autorizar bombardeios secretos no Camboja, entre 1969 e 1973, é considerada um crime de guerra cometido pelo então conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon. Até o fim da vida, ele defendeu a decisão, que só veio a público graças a um repórter do New York Times, William Beecher. Em suas memórias, Kissinger disse que o objetivo era eliminar a atividade de tropas comunistas do Vietnã do Norte, e concluiu que a Casa Branca foi “forçada” a agir.

Apoio a ditaduras

Kissinger também deu aval a golpes antidemocráticos sob a justificativa do “combate ao comunismo”. Na América Latina, o apoio ao ditador Augusto Pinochet, que derrubou o presidente Salvador Allende, deu início a uma ditadura de 17 anos, que deixou mais de três mil mortos e levou mais de 200 mil pessoas ao exílio. Os “voos da morte”, replicados na Argentina ditatorial, e as torturas nos porões do Estádio Nacional de Santiago levaram a digital de Kissinger.

“Kissinger se encontrou com o general Augusto Pinochet, do Chile, e em uma sessão privada, prometeu ao homem que aboliu o regime civil que os EUA estavam ao seu lado contra a conspiração comunista internacional”, escreveu Hitchens, em um artigo de 2004 da Vanity Fair, citando documentos do Departamento de Estado.

“Pinochet fez duas referências ao ex-chanceler chileno Orlando Letelier, que foi para o exílio em Washington, e que estava dificultando a vida do regime ao fazer lobby com congressistas. Kissinger não disse nada. Três meses depois, um carro-bomba foi detonado por um veículo que acompanhava Letelier, criando o caos em Washington e matando Letelier e seu assistente.”

Kissinger jamais foi processado em vida, pelo contrário: continuou a frequentar a Casa Branca décadas depois de deixar oficialmente o poder. Sua influência permaneceu intacta às denúncias, como as de Hitchens, enquanto continuou fazendo dinheiro com livros, palestras e consultorias e, após sua morte, recebeu homenagens em todos os níveis acadêmicos e de governo.

 

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