Sábado, 08 de novembro de 2025
Por Redação do Jornal O Sul | 8 de novembro de 2025
Em tempos de revolução tecnológica, o que ainda cabe ao humano no tratamento de outro ser humano?
Em uma madrugada insone, entre memórias de mestres da medicina e reflexões sobre o rumo do cuidado humano, me vi questionando: para onde estamos indo? Em um mundo cada vez mais digital, informatizado e automatizado, o que acontecerá com a empatia, a compaixão, o toque, o olhar atento e a escuta ?
Desde 1997, quando iniciei minha trajetória médica, aprendi que a prática clínica vai muito além de diagnósticos e protocolos. Aprendi com professores e pacientes, marcantes em minha trajetória. Me ensinaram medicina, ética e humanidade e moldaram minha identidade profissional. Me ensinaram com maestria condutas comuns, avanços tecnológicos, como interpretar o silêncio, o choro, a dor, como curar, aliviar e consolar.
Aprendi tanto o que fazer, quanto o que não fazer, que o “menos cuidado” pode significar “mais cuidado”, que a clinica do paciente é soberana e que o exame alterado nem sempre tem relevância clinica, assim como resultados normais nem sempre significam que o paciente esta bem ou não tem risco de um mal súbito, e que o ser humano, mesmo diante da exatidão da ciência, é cheio de nuances que escapam aos algoritmos.
Hoje, com a ascensão da inteligência artificial, vivemos uma revolução no modo de fazer medicina. O que antes exigia horas folheando enciclopédias, agora é resolvido em segundos. Sistemas de apoio à decisão, prontuários inteligentes, algoritmos preditivos. Tudo isso é útil, mas… será suficiente?
Recentemente, assisti a uma palestra da cientista canadense Kasley Killam, sobre o conceito de “saúde social” — definida como a capacidade de desenvolver e manter conexões interpessoais significativas. Ela defende que esta dimensão é tão essencial quanto a saúde física e mental para o bem-estar geral das pessoas.
Durante a palestra, Killam convidou os participantes a enviar mensagens de gratidão a pessoas importantes em suas vidas. Entre profissionais e pacientes, me vi imersa em lembranças que me moldaram como médica e como ser humano. E compreendi: para sermos bem sucedidos no cuidado, precisamos de conexão.
Vivemos na era da solidão. Acompanhamos, estarrecidos, o crescimento da depressão, inclusive entre jovens — aqueles que deveriam carregar a esperança do futuro. Nunca estivemos tão conectados virtualmente e, ao mesmo tempo, tão desconectados emocionalmente. A máquina pode ler dados, mas não compreende a alma e os anseios.
A IA, por mais precisa, não decifra o significado de um abraço, o consolo silencioso de uma presença ao lado do leito, nem o sofrimento expresso em um olhar. Ela pode processar milhões de dados, mas não entende quando um exame normal esconde uma alma fragilizada e doente, e não sabe que a interpretação dos sintomas é soberana ao resultado dos exames. E quando a IA errar o diagnóstico? Nenhum processo é completamente infalível. Quem será responsabilizado?
A IA não comunica um óbito com voz embargada, não se senta à beira de um leito para ouvir uma história que não está no prontuário. Não se pergunta, dias depois de um momento crítico, como o paciente se sentiu — não por protocolo, mas por interesse genuíno, e assim, transformando a interpretação da dor de alguém em alívio para os próximos pacientes.
Definitivamente, não se trata de negar a tecnologia. Trata-se de reconhecer seus limites.
O médico, hoje, está mais pressionado do que nunca: metas, produtividade, atendimentos em série. A IA pode e deve ser ferramenta de alívio e suporte. Mas nunca substituto. O julgamento clínico, a sensibilidade diante do sofrimento, a leitura holística de um ser humano em dor — tudo isso é insubstituível.
A responsabilidade de cuidar de outro ser humano em sua vulnerabilidade mais extrema, nenhuma tecnologia será capaz de compreender.
Não existe uma resposta única para os desafios da medicina contemporânea. O avanço tecnológico é inevitável e bem-vindo — quando aliado ao compromisso ético e ao cuidado humanizado. Mas cabe a nós garantirmos que a presença, a escuta, o carinho, a fé e a compaixão não se tornem obsoletos diante das tecnologias vindouras.
Na linha tênue entre a vida e a morte, uma voz familiar pode ser tão terapêutica quanto um medicamento. Uma mão segurando a sua pode ser a diferença entre desistir e lutar.
A inteligência artificial pode ser treinada para detectar doenças raras, prever epidemias e até sugerir condutas terapêuticas. Mas não sabe o que é amor, não entende o luto, não chora conosco.
E você, leitor: diante de uma situação crítica, preferiria ser cuidado por uma máquina ou por um ser humano?
Talvez a pergunta mais importante do nosso tempo não seja se a máquina pode curar, mas quem, afinal, queremos que nos cuide.
* Daniele de Ávila Dalmora, médica pediatra, pneumologista pediátrica e emergencista