Quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Metralhadoras, fuzis e foguetes: a conspiração que em 31 de março de 64 armou civis e militares contra o então presidente do Brasil João Goulart

Era 31 de março quando um grupo de oficiais da Aeronáutica se concentrou na Escola Anne Frank, perto do Palácio Guanabara (RJ), onde se entrincheirara o governador Carlos Lacerda. Tinham um jipe com um lançador de foguetes e metralhadoras.

No Regimento de Cavalaria da Força Pública de São Paulo, o tenente-coronel Adauto Fernandes de Andrade pôs a tropa em forma e disse: “O general Olympio Mourão saiu de Minas em direção ao Rio. Eu estou com ele. Quem não quiser, pode ir pra casa e só voltar quando terminar a revolução.” Não saiu ninguém de forma.

O que ligava os militares reunidos no Rio e os de São Paulo era uma conspiração que contou com a participação de empresários, políticos e oficiais do Exército e da Força Aérea para providenciar armas aos grupos que se preparavam para derrubar o presidente João Goulart.

Eles contaram com compras de fuzis e metralhadoras no exterior e com o desvio de armamento no País. Também houve treinamento de combate. Eis aqui uma história pouco conhecida sobre os meses que antecederam ao golpe que mudou o País.

Neste texto estão os relatos inéditos de dois oficiais da antiga Força Pública e o de um coronel da Força Aérea. Eles participaram, não só da conspiração, como estiveram na linha de frente dos rebelados contra Jango, no dia 31 de março, quando a sorte do movimento iniciado por Mourão Filho não havia sido ainda decidida. Peça central nessa trama teve um velho conspirador, homem envolvido na revolta de Aragarças, contra o presidente Juscelino Kubitschek. Tratava-se do tenente-coronel-aviador João Paulo Moreira Burnier, que anos mais tarde fundaria o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA).

Conta o então tenente Lúcio (hoje coronel L.W.B.G) que o telefone tocara em sua casa na noite do dia 30 de março. Era dona Nilza, a mulher de Burnier. “O João Paulo disse para você se armar e ir para a Escola Anne Frank.” O marido estava em Minas, trazendo granadas e dinamite para os conspiradores, no Rio. Nos meses anteriores, o coronel dedicara-se a contrabandear e a desviar armas para seus companheiros no Rio, em Minas e em São Paulo. Trouxe metralhadoras tchecas para os mineiros e para os pernambucanos. Com os paulistas arrumou fuzis para a Força Pública e foguetes da fábrica Paraíba.

Um dos oficiais que manipularam esse equipamento, o coronel Newton Borges Barbosa, do Regimento de Cavalaria da Força Pública de São Paulo contou: “Faziam o chamado tiro tenso, que é executado com ângulos de elevação pequeno, cargas fortes e velocidade elevada”. A trajetória dos disparos era rasante. Em São Paulo, dois capitães da Força Pública paulista – Barbosa e Salvador D’Aquino, homens de confiança do tenente-coronel Adauto –, eram os responsáveis pela guarda das armas e dos foguetes.

“Você sabe como funciona a granada antitanque? Chama efeito Monroe. A granada dentro, você não enche de trotil, o trotil parece uma massa de janela, você pega o cone de cobre e enfia o cone assim, dentro e forma um losango, um espaço oco e na frente o bico do foguete”, contou Barbosa.

Barbosa conta que Adauto era a ligação de Burnier em São Paulo. “Com o Burnier eu estive várias vezes. A gente viajava sexta-feira à noite e voltava no domingo. Foram feitas várias viagens. Em Macaé, fizemos o teste para lançamento. O alcance era 4 mil metros. Lá no campo (de teste) tinha oficiais do Exército e da Aeronáutica. Eu era o único paulista ali.”

Nas décadas seguintes, Barbosa chefiaria o Serviço de Informações da corporação paulista e chegaria a subcomandante da PM, durante o governo de Franco Montoro (1983-1987) – ele faleceu em maio de 2022.

Futuro fundador da Rota, D’Aquino chegaria ao posto de coronel. Ele estava de prontidão na sua companhia, na véspera do golpe. “Eu cheguei a receber um caminhão de munição. De metralhadora, fuzil.” D’Aquino morreu em 2005.

Tudo ainda era nebuloso no dia 31. Parte do Exército e da Força Aérea hesitavam, à espera de ordens do presidente Goulart – o golpe seria vitorioso apenas no dia seguinte. Burnier chamou um jovem tenente do Exército – Cyro Guedes Etchegoyen –, que participava de seu grupo. No relato do tenente Lúcio, ele disse:

“Etchegoyen, você que é do Exército, vai lá fazer o contato com esse cara, o comandante dos tanques, para saber qual é a desse cara.” Tratava-se de Freddie Perdigão – que no futuro trabalharia no Centro de Informações do Exército (CIE) e no Serviço Nacional de Informações (SNI), a exemplo de Etchegoyen. Burnier completou a ordem: “Você (L.W.B.G.) vai uns dez metros atrás dele (Cyro), com a metralhadora. Ô Cyro, se for uma cilada, você faz um sinal para o Lúcio e sai da linha de tiro, e ele passa fogo no cara do tanque.”

E assim foi feito. Cyro e Lúcio foram a pé até a Rua das Laranjeiras. O caminho estava todo bloqueado pelos caminhões Fenemê de lixo, da empresa de limpeza pública. Os quase 300 revoltosos que defendiam o Palácio, todos com lenços brancos no pescoço, portavam revólveres calibre 32 e 38, algumas pistolas calibre 7,65 mm e 45 e umas poucas metralhadoras.

Cyro pediu que os caminhões fossem retirados para permitir a passagem dos tanques para o lado dos revoltosos.

Lúcio permanecera ao lado do Jeep onde Burnier instalara uma plataforma lança-foguetes. A munição fora furtada da Aeronáutica, e a engenhoca fora montada para disparar, direto nas forças governistas que ameaçassem tomar o Guanabara. Temia-se uma ação dos fuzileiros navais, comandados pelo vice-almirante Cândido da Costa Aragão, um legalista que entraria na primeira lista dos cassados.

As ordens eram claras. “Se as tropas do Aragão vierem por ali, você puxa essa cordinha, e o foguete dispara. Mas você tem de mirar no olho.” Naquele dia, nenhum marinheiro apareceu, e Lúcio não precisou “puxar a cordinha”. Se tivesse, o resultado poderia ter sido desastroso.

Após a adesão dos tanques de Perdigão, Lacerda deixou o Palácio e se dirigiu à escola. Fazia cinco anos que estava rompido com Burnier por ter se oposto à revolta de Aragarças, na qual o oficial tomara parte. Menos de cem metros separavam os dois prédios.

O governador foi recebido pelo oficial e disse: “Coronel, venho aqui lhe dizer que acabo de receber um telefonema do general Amaury Kruel nos seguintes termos: ‘Sob o meu comando, as tropas do 2.º Exército se deslocam para o Rio a fim de depor o presidente da República’.” Lúcio nunca mais esqueceu a cena. Burnier respondeu-lhe com uma única palavra: “Ciente!” O diálogo simbolizava a vitória do golpe. Goulart seria deposto.

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