Domingo, 05 de outubro de 2025

Nem farra, nem fuga: revolução silenciosa

Mulheres, viagem.

Peguem as suas amigas pela mão e vão. Confia. Eu explico.

Durante toda a vida, nós somos treinadas para caber: caber na roupa, caber no tempo, caber nas expectativas. As alheias e, provavelmente, as nossas também.

A sociedade nos ensina, desde cedo, a sermos múltiplas. Porém, curiosamente, também nos quer invisíveis ao mesmo tempo. Mãe, esposa, filha, profissional, amiga, cuidadora, conselheira. Trabalhos silenciosos de uma importância tremenda – mas que ninguém vê. Uma coleção de papéis que carregamos com orgulho, mas que, pouco a pouco, vão apagando o contorno da nossa própria essência. E perder a essência é essencial para se perder (trocadilho inevitável).

Não que os homens não tenham papéis – têm, e muitos. Mas há uma diferença sutil (e cruel): eles podem ser homens apesar dos papéis; nós, quase sempre, precisamos ser tudo por causa deles.

E quando ousamos ser felizes por nós mesmas, sem justificativa, vem o julgamento disfarçado de opinião: “está muito espaçosa”, “barulhenta”, “metida”, “exibida”. Traduzindo: está viva demais.

É por isso que viajar só entre mulheres é quase um ato de rebeldia – e de resgate.

Quando estamos entre iguais, algo mágico acontece: reaparece a menina que mora dentro da mulher. Aquela que ri alto, que fala sem pensar, que dança sem culpa, que não precisa cuidar de ninguém além de si mesma.

Viajar com amigas está longe de ser “viagem para farra”. Ah, se vocês soubessem…

As mães cansadas aproveitam o dia para tomar sol sem se preocuparem com o almoço das crianças – e as noites, para cantar as músicas que tocam o seu coração (e não o da Galinha Pintadinha).

As mulheres que viajam juntas riem de piadas bobas e choram por coisas ainda mais bobas – mas têm a quem abraçar. E nesse abraço cabe toda a compreensão do mundo.

As esposas, por sua vez, passam a sentir falta do marido (juro!), resgatando lembranças doces, querendo o cheiro, desejando voltar ao porto seguro.

Se os homens soubessem como nos faz bem, investiriam mais nesses momentos – porque, sim, isso é investir em si mesma. Da Sicília a Gramado, de Paris ao Rio. O destino não importa: o que importa é a companhia de jornada.

E talvez isso desperte algo ainda mais profundo – algo ancestral.

Porque, ao longo de toda a história da humanidade, as mulheres sempre viveram em tribos.

Cozinhavam juntas, criavam as crianças em roda, cuidavam umas das outras enquanto os homens saíam para caçar. Havia cumplicidade, partilha e instinto de grupo. É dessa memória coletiva que vem o conforto de estar entre mulheres: é um retorno simbólico à fogueira primitiva, onde o riso era remédio e o afeto, abrigo.

Acreditem ou não, um estudo da Universidade Griffith, na Austrália, mostrou que “mulheres que participam de experiências turísticas ao ar livre relatam sensações de felicidade, gratidão, relaxamento e clareza – além de um verdadeiro resgate psicológico e a redescoberta de partes de si mesmas que pareciam perdidas” (Buckley & Westaway, 2020).

Sabem por quê? É libertador não precisar desempenhar. É curativo não precisar priorizar.

Afinal, o “outro” está sempre lá: o marido, os filhos, os pais, o trabalho que nunca termina.

A mulher é, por natureza, doadora – mas a gente se doa demais. E tudo que é demais, esgota.

Veja: uma pesquisa conduzida pelas autoras Berdychevsky, Gibson e Bell (2013) classificou as chamadas girlfriend getaways – viagens entre amigas – como experiências que promovem “escapismo, autenticidade existencial e empoderamento”. As participantes relataram uma profunda sensação de liberdade frente às estruturas sociais e expectativas de gênero.

Outro estudo, que acompanhou 79 mulheres entre 21 e 87 anos, mostrou que essas viagens cumprem funções psicológicas diferentes em cada fase da vida – “alívio do estresse, reencontro com amizades femininas e enfrentamento de transições importantes”, como o envelhecimento, o divórcio ou a sobrecarga de papéis (Gibson, Berdychevsky & Bell, 2012).

Tudo isso ajuda a explicar por que precisamos, de tempos em tempos, dessas pequenas fugas.

Mas o grande problema é que as pessoas que cercam as mulheres não compreendem que essa fuga não é da família, do casamento ou da maternidade. Essa fuga é para dentro.

Em outras palavras, é na ausência de papéis que o “eu” feminino respira.

Fuga e mergulho.

Um mergulho profundo na paz de não ter obrigações, na leveza das risadas, no silêncio que revela quem ainda somos, apesar de tudo.

E, curiosamente, é nesse reencontro com a própria essência que nasce o maior desejo de todos: voltar pra casa – mas inteira.

Ali Klemt (@ali.klemt)

 

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