Quinta-feira, 06 de novembro de 2025

O guitarrista de quarenta

Entre o peso da maturidade e o som da liberdade, o homem reencontra na guitarra o espelho do que o tempo levou — e do que o tempo jamais conseguiu apagar.

Há uma hora na vida em que o homem precisa se ouvir de novo.
Não o ruído do mundo — o som que o tempo abafou.
E quando esse instante chega, entre a rotina e o silêncio, há sempre um estojo guardando o que sobrou do sonho: uma guitarra, companheira antiga de um amor que nunca morreu.

Aos quarenta, ele não quer mais provar nada.
Quer apenas sentir o que ficou suspenso entre um acorde mal tocado e uma canção interrompida.
Ele liga o amplificador e o leve chiado é quase um sussurro divino: “Ainda há tempo.”

O médico, o dentista, o professor, o gerente — todos se encontram nesse mesmo gesto.
Homens que curam, ensinam, administram, planejam. Homens treinados para controlar o caos.

Mas quando a guitarra toca, é o caos que os cura.
A precisão do bisturi cede ao improviso do blues; a lição planejada vira descoberta; a planilha se dissolve em som.
Aquele que passou a vida tendo respostas se permite, por um instante, viver a pergunta.

Entre o chiado do amplificador e o primeiro acorde, há um instante de pureza.
É o momento em que Clapton conversa com a alma, Vaughan incendeia o ar e Duane Allman transforma o deserto em estrada.
Eles habitam a memória como mitos vivos — não como ídolos, mas como ecos de um tempo em que ser livre bastava.

Há quem toque para o público.
Há quem toque para se ouvir.
E há quem toque para calar as vozes de dentro — as que perguntam se ainda vale a pena, se o tempo não passou, se o som ainda tem propósito.

Tocar não é nostalgia: é reconexão.
É lembrar que há algo em nós que não envelhece — a vontade de transformar ruído em beleza.
E enquanto o som vibra no ar, o quarentão entende:
não se trata de ser virtuoso, nem de impressionar ninguém.
Trata-se apenas de existir um pouco mais intensamente — um acorde por vez.

A guitarra é espelho.
Mostra o que o tempo levou — e o que o tempo não consegue apagar.
Devolve o rosto do garoto que sonhava com aplausos, o pai que ensina paciência, o chefe que aprendeu a calar, o homem que enfim entende que amor também é silêncio.
Quando o som vibra, tudo se reconcilia: o menino e o adulto, o passado e o presente, o real e o sonhado.

Tocar não é vaidade. É sobrevivência.
É uma oração elétrica, uma confissão sem padre, uma forma de continuar existindo quando o mundo exige demais.
Cada nota é uma pequena vitória sobre o cansaço,
cada harmônico, uma lembrança de que ainda há fogo dentro do peito.

O guitarrista de quarenta já entendeu que a perfeição não mora na técnica, mas na entrega.
Ele toca não para o palco, mas para o tempo.
E nesse diálogo invisível entre cordas e alma, descobre que viver é isso:
afinar-se um pouco mais a cada dia, até que o ruído vire música.

Jader Schmidt Gaklik – publicitário, gestor estratégico de negócios e pessoas, especialista em contabilidade, perícia e auditoria e MBA em economia financeira

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