Sexta-feira, 09 de maio de 2025

O Paradoxo Trumpista e o “Doce Comércio” de Montesquieu

No turbilhão político que marca os Estados Unidos contemporâneos, Donald Trump encarna uma contradição essencial, que remete a uma das mais refinadas tradições do pensamento político moderno. Ao revisitar Montesquieu, notadamente sua máxima de que “é uma felicidade para os homens encontrarem-se numa situação em que, ao mesmo tempo em que suas paixões inspiram-lhes a ideia de serem maus, eles têm interesse em não sê-lo”, somos levados a refletir sobre os limites — e também as salvaguardas — do comportamento de líderes autoritários em sistemas democráticos.

Trump, cuja trajetória política está marcada por impulsos personalistas, ataques sistemáticos às instituições e gestos teatrais que flertam com o grotesco, tem se revelado uma figura extremamente controversa. Sua paixão pelo “deal”, sua obsessão pela negociação como arte maior da vida pública e privada, em contraste com sua personalidade arrivista, o insere num dilema: é levado por impulsos destrutivos, mas encontra, no desejo de manter seus negócios, influência e prestígio, razões para não ultrapassar certos limites.

Esse paradoxo nos remete ao conceito de doux commerce, cunhado também por Montesquieu. A ideia de que o comércio amacia os costumes, que a interdependência econômica modera os ímpetos da violência, foi um dos pilares da filosofia iluminista e da arquitetura institucional liberal. Quando os fundadores dos Estados Unidos desenharam sua república constitucional, com seus freios e contrapesos entre os poderes, certamente compartilhavam essa crença otimista de que interesses bem calibrados poderiam conter paixões maliciosas.

Contudo, o caso Trump desafia essa fórmula. Durante seu primeiro mandato e agora, vemos um chefe de Estado que, ao invés de ser refreado por regras institucionais e compromissos internacionais, muitas vezes testa seus limites. Desafia a separação de poderes, despreza a imprensa livre, confronta a academia e o Judiciário e estimula tensões raciais e religiosas. A recente performance grotesca de Trump vestido como Sumo Pontífice, ao zombar da iconografia católica, expõe não apenas seu desrespeito à diversidade religiosa, mas sua busca constante por atenção e domínio narrativo, mesmo que à custa da estabilidade institucional.

Ainda assim, mesmo nesse cenário sombrio, é preciso reconhecer os antídotos da própria estrutura americana. As instituições, ainda que abaladas, mostram alguma resiliência. A Suprema Corte mantém sua independência, governadores e parlamentos estaduais resistem à pressão eleitoral indevida. E, em certos episódios, o próprio Trump recuou — não por escrúpulo, mas por cálculo. O comércio, os mercados, os investidores e os acordos bilaterais exerceram sobre ele uma força gravitacional inusitada: o medo de quebrar a lógica do lucro o impediu de levar certas ações ao extremo.

É neste ponto que o paradoxo se intensifica. Se, por um lado, é inquietante que a democracia dependa do egoísmo ilustrado de seus líderes, por outro, é uma vitória silenciosa do projeto iluminista que até mesmo um autocrata em potencial seja, ao fim, compelido a agir com alguma moderação por interesse próprio. A paixão de Trump

pelos negócios torna-se, assim, uma contenção involuntária de sua própria ruína moral e institucional.
Há aqui, portanto, uma ironia providencial. A mesma lógica de acumulação e negociação que gerou desigualdades e tensões no sistema global, talvez seja a última trincheira contra o autoritarismo puro. Se Trump mantém algum vínculo com a racionalidade — por mais precário que seja —, é por saber que sem comércio não há império, e sem estabilidade institucional não há negócios.

Por fim, cabe ao observador atento reconhecer o duplo movimento da história. As paixões humanas não mudaram, mas as estruturas que as cercam e moldam, sim. A democracia liberal, mesmo acuada, ainda se mostra capaz de absorver e neutralizar forças destrutivas quando suas instituições são firmes e seus cidadãos vigilantes. Trump pode ser inclinado ao mal, como advertia Montesquieu, mas felizmente ainda pode ter interesse em não sê-lo.

Instagram: @edsonbundchen

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