Segunda-feira, 15 de dezembro de 2025
Por Redação do Jornal O Sul | 14 de dezembro de 2025
O Projeto de Lei Antifacção (5.582/25) que a Câmara recebe de volta do Senado é melhor do que o que ela entregou. O texto original tinha méritos, fechou lacunas da Lei das Organizações Criminosas e endureceu penas para líderes e financiadores. Mas era vulnerável no ponto estrutural: a arquitetura institucional para enfrentar grupos que já operam como máfias transnacionais, com capilaridade econômica, territorial e política. A revisão dos senadores não chegou a anular totalmente essas fragilidades, mas corrigiu excessos, eliminou riscos jurídicos e conferiu coerência técnica ao conjunto.
Uma mudança relevante foi substituir o tipo de “domínio social estruturado” por uma definição mais precisa de “facção criminosa”. A intenção original – enquadrar o poder territorial – era correta, mas o dispositivo convivia com incertezas interpretativas e tensões com a legislação vigente. A nova redação preserva o objetivo, com maior clareza conceitual e menor risco de conflito com o Código Penal e a Lei das Organizações Criminosas, reduzindo a insegurança jurídica que inevitavelmente seria explorada pelas defesas dos criminosos. Também foram aprimorados avanços centrais da Câmara: penas mais duras e escalonadas para chefes e financiadores das facções, enquadramento adequado das milícias, agravantes proporcionais para crimes de integrantes de facção e instrumentos mais robustos para rastrear, bloquear e asfixiar fluxos financeiros criminosos.
O Senado acertou ao rejeitar novas tentativas de equiparação das facções ao terrorismo. Não se reduzem os riscos ao País com atalhos conceituais: terrorismo exige motivação política ou ideológica; facções brasileiras movem-se por lucro. Ao evitar esse desvio, o Senado protege o sistema jurídico de contradições perigosas e bloqueia aventuras interpretativas que poderiam justificar excessos, incluindo riscos à soberania nacional.
Duas inovações institucionais merecem atenção. O primeiro é a criação do Banco Nacional de Organizações Criminosas, que inaugura um esforço – ainda incipiente – de integração de dados entre União e Estados. Não se enfrentam máfias com mais de 1.500 agências atuando de forma isolada e com métodos incompatíveis. O segundo é a vinculação de receitas das bets ao Fundo Nacional de Segurança Pública. Sozinha, a medida não resolve a desorganização federativa, mas cria fonte estável de financiamento e dá fôlego aos Estados que hoje sustentam, quase isoladamente, o enfrentamento cotidiano às facções. É um gesto de realismo fiscal raro num tema habitualmente capturado por retórica vazia.
Mas limites persistem. Ao atribuir à Polícia Federal a coordenação das forças integradas, o projeto concentra poder em uma única instituição. Sem uma autoridade nacional antimáfia – independente, técnica e blindada – a cooperação federativa seguirá vulnerável a disputas corporativas e à volatilidade política. A Itália só virou o jogo contra Cosa Nostra quando criou estruturas permanentes capazes de integrar inteligência, investigação e repressão com autonomia. O Brasil continua sem isso.
Persistem também tensões normativas entre o novo texto e a legislação vigente. Embora mitigadas, elas podem gerar interpretações divergentes e contenciosos que favorecem a impunidade, exatamente o que especialistas alertam há anos: onde o Estado vacila, o crime avança.
Há, ainda, uma lacuna relevante: o País não decidiu se enfrenta criminosos comuns ou estruturas paramilitares que exercem soberania de facto. Essa indefinição limita a precisão das políticas públicas e impede que o arcabouço jurídico acompanhe a escalada bélica e territorial das facções – um ponto que o projeto toca apenas lateralmente.
O Senado entregou um texto melhor, mais claro e mais funcional. A ser aprovado e sancionado, o Brasil terá uma lei razoável, mas ainda não uma estratégia nacional consistente. E enquanto combater máfias e narcomilícias com ferramentas desenhadas para crimes comuns, o Estado corre o risco de seguir um passo atrás de organizações que, em várias regiões, já acumulam recursos, logística e controle territorial capazes de desafiar sua autoridade. (Coluna de opinião do portal Estadão).