Quarta-feira, 16 de julho de 2025

Psicanalistas ganham popularidade nas redes e levantam debates sobre limites éticos

Eles estão por toda parte na web. Além de terem seus próprios perfis com centenas de milhares de seguidores, aparecem em podcasts e programas de TV, viralizam no TikTok e no Instagram, comentam realities e dão opiniões sobre temas do cotidiano: relacionamentos, autoestima, trabalho — tudo sob as óticas freudiana ou lacaniana. Os psicanalistas quebraram a quarta parede do consultório e ganharam protagonismo nas redes, um movimento que não passa incólume a dilemas: até que ponto essa exposição ajuda a disseminar a psicanálise e o que se perde (ou se ganha) quando conceitos complexos do processo psicanalítico são transformados em frases de efeito?

Psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da USP e autor de mais de cem artigos científicos e 15 livros — um deles laureado com o Prêmio Jabuti — Christian Dunker está entre os precursores desse movimento. O paulistano, de 58 anos, criou o seu canal no YouTube em 2014 e já reúne mais de 473 mil inscritos. “Na época, meu filho estava com 15 ou 16 anos, quando ele e os meninos que integram sua banda de rock sugeriram que eu usasse a internet para me comunicar. Até hoje, são eles que me ajudam no canal, editam e fazem os cortes nos vídeos. Todo o dinheiro é revertido para eles. Não é minha fonte de renda, mas uma experiência social”, revela.

A proposta somou-se com a predileção de Christian em articular psicanálise a outros assuntos. “Combino temas técnicos — que envolvem um conjunto de conceitos que demandam leitura — com cinema, cultura popular, música, filosofia e política. Gosto de falar daquilo que está preocupando as pessoas naquele momento, algo relevante para a saúde mental”, diz o psicanalista, que mantém sua atuação em consultório.

Pesquisador e psicanalista, André Alves co-apresenta o “Vibes em análise”, podcast que põe as tendências comportamentais e culturais no divã das plataformas de áudio, que já soma 2,5 milhões de reproduções, e é autor do livro homônimo. Formado pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo, o paulistano, de 38 anos, já participou do “Sem censura”, na TV Brasil, e de episódios do “Bom dia, Obvious” — podcast de Marcela Ceribelli—, e observa que os analistas têm uma relação mais íntima com o universo midiático do que a classe gostaria de assumir. “Jacques Lacan já foi para a TV, Donald Winnicott teve um programa de rádio”, cita. Mas, para além disso, ele acredita que uma crise psíquica global esteja impulsionando essa popularização da psicanálise nas redes. “Não está fácil dar conta do sofrimento. Nunca se falou tanto em traumas, limites, depressão, ansiedade e narcisismo”, analisa o profissional, que tem 111 mil seguidores no Instagram.

André também pondera sobre os efeitos negativos da exposição: quando a linguagem nas redes se torna “terapeutizada ou terapeutizante”. “Corremos o perigo do esvaziamento, de falar tanto sobre alguns termos que acabem sendo banalizados”, explica. “Por outro lado, há a possibilidade do pertencimento, da conexão por uma mesma questão angustiante.”

Secretária-geral da Federação Brasileira de Psicanálise, Daniela Bormann enxerga a inserção midiática dos profissionais como favorável à disseminação do conhecimento psicanalítico, no entanto, afirma que a exposição pode comprometer o andamento do processo terapêutico no consultório. “Quando o analista está exposto, o paciente tem acesso às suas subjetividades. Isso pode afetar o conceito de transferência”, afirma.

Na psicanálise, transferência é o nome dado ao fenômeno em que o paciente projeta no analista sentimentos, desejos e expectativas que originalmente foram dirigidos a figuras importantes de sua vida, como pais, cuidadores ou parceiros afetivos. Em outras palavras, a relação com o analista acaba sendo atravessada por emoções vindas de experiências passadas — muitas vezes, inconscientes. Essa dinâmica não é um “erro” do paciente, mas sim uma parte fundamental do processo terapêutico. Ao observar e interpretar essas projeções, o analista pode ajudar a pessoa a entender padrões repetitivos em seus relacionamentos e comportamentos. A transferência permite, portanto, que conflitos psíquicos antigos se revelem no presente, dentro do espaço protegido da análise, no qual podem ser elaborados.

Apesar de não falar abertamente sobre casos, André Alves cita uma quebra de expectativa de alguns pacientes em relação à sua condução do processo psicanalítico no consultório. “Os que acompanham o ‘Vibes em análise’ chegam à clínica achando que vão ter uma grande conversa. Não sou um dos psicanalistas mais calados, mas uma sessão de análise é muito diferente de um podcast. É importante que essa diferenciação aconteça, até para construir e cultivar a transferência.”

Autora do best-seller “A gente mira no amor e acerta na solidão”, e de mais seis livros, Ana Suy, de 40 anos, concorda com André no que se refere ao impacto dos psicanalistas influencers no consultório, sua atividade principal. “Ser famosa (só no Instagram são 530 mil seguidores) mais atrapalha do que ajuda, porque acabo recebendo muito pedido de análise de leitores que não vou conseguir atender. Minha agenda está fechada há mais ou menos cinco anos, porque o processo psicanalítico é longo”, diz a psicanalista, atuante na área há 18 anos.

No perfil de Ana, conteúdos sobre relacionamento são os que mais engajam. “Não estamos vivendo uma crise de amor, ele é que é a própria crise. Tem gente que me critica dizendo que posto frase de efeito. Mas a ideia é convidar as pessoas a refletirem da forma como faz sentido para elas. Isso é o que me interessa em psicanálise”, diz a escritora.

Com cursos, palestras, consultorias e eventos, a agenda da psicanalista Maria Homem, seguida por 529 mil pessoas no Instagram, é complexa, mas a paulistana, de 56 anos, faz questão de manter suas atividades no consultório. “Adoro atender e, para mim, a escuta é ferramenta básica”, comenta a profissional, que é ainda professora e pesquisadora do Núcleo Diversitas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Formada há 34 anos pela mesma universidade em que hoje leciona, com mestrado em Psicanálise e Estética na Universidade de Paris 8 e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, Maria encontrou na psicanálise um lugar para explorar sua paixão pelo “mistério da alma humana”, e se coloca como favorável à possibilidade de permissão ao psicanalista de ser um sujeito falante no espaço público. “Na clínica, o trabalho é de escuta ao inconsciente do paciente. Já nas redes, compartilho as minhas vivências e experiências. Não com um tom de autoridade ou de verdade absoluta sobre as coisas. mas por estarmos num coletivo humano democrático, passível de debate sobre a realidade compartilhada por nós”, comenta a psicanalista.

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