Sexta-feira, 04 de julho de 2025

Suspeição de si mesmo/a, Marx, bolhas, eleições

Na compreensão marxista, ideologia é uma construção ideal (formulação mental explicativa do mundo ou projeto de mundo) na qual oa próprioa autora não reconhece os condicionamentos históricos que a produziram. Oa idealizadora não compreende tudo o que oa levou a idealizar as ideias que explicita e defende.

Ainda segundo Karl Marx, na totalidade das formas de consciência social, está contido o sistema de ideias que legitima as relações de poder existentes, levando a que não se perceba – devido às falsificações de percepção que a ideologia provoca – o estado de desvantagem em que se está nessas relações de poder.

Conforme penso, ideologia é um sistema de ideias historicamente produzidas, as quais são assumidas e sustentadas por grupos sociais. Essas ideias explicam e fundamentam a circunstâncias. Não há, pois, possibilidade de ler e compreender o mundo e o próprio lugar no mundo senão por meio de uma ideologia.

Simplificando: de tudo o que acontece ao meu redor (conjunto de eventos que me envolvem, ideias, inclusive), vem a “matéria” com a qual é “montada” e “calibrada” a minha consciência (produzida historicamente). Com aquilo que me veio do mundo, então, eu penso o mundo, justifico-o e o reproduzo.

Tornando a Marx, outra palavra significante: crítica. Criticar é tomar consciência dos fundamentos dos fenômenos, da relação entre eles, das suas origens, dos seus efeitos; é compreender as subjacências de uma ideia ou de um evento histórico; é estudar o “por trás” dos acontecimentos do mundo e explicitá-lo.

Quem não sabe criticar a inserção da própria vida nos laços de poder que a envolvem é alienadoa. Oa alienadoa está no mundo sem conhecer e, logo, sem compreender os fatores sociais, políticos, econômicos, culturais (midiáticos, inclusive), que oa condicionam e oa levam a comportar-se da maneira que se comporta.

Aqui, um interrogante de possibilidade: alguém consegue fazer crítica de si mesmoa, tendo em vista que ao criticar-se essea alguém usará a “matéria” de seu já constituído pensamento, o qual está “contaminado” ideologicamente? Noutras palavras: alguém consegue atuar com imparcialidade na autocrítica?

Não creio. Ninguém se vai examinar e avaliar, nem com as minúcias necessárias, nem com a neutralidade “honesta”, nem com os valores que não sejam os já internalizados. A única coisa possível, nesse aspecto, é ter consciência de que jamais teremos total consciência dos motivos que nos afetam a consciência.

Em certa medida, pois, embora a palavra nos seja desagradável de aplicá-la a nós mesmoas, das teorias ou práticas que nos concernem, alguma alienação incide no nosso pensar ou agir. Não damos conta do todo. Em algum grau somos envolvidoas por afetos e concepções que nos embaraçam de nos sabermos por inteiro.

A esse respeito, na linguagem jurídica diz-se suspeição. Trata-se do receio motivado, suscetível de se opor a alguém que atue em um processo, de quem, pois, se deve esperar imparcialidade, mas que não pode garanti-la, em razão de conjuntura ou interesse intercorrente que oa prive de exação no exercício de suas funções.

Quer dizer, a pessoa pode ser honesta, mas, para avaliar algo que lhe seja atinente, está sob suspeição. Ademais, como todoas estamos tocadoas por ideologia, oa indivíduoa honestoa também o estará. Enfim, oa sujeitoa pode se ter sob crítica, mas essa crítica será feita com conteúdo subjetivado, logo, sob suspeição.

Incluo as mídias sociais e seus algoritmos na reflexão. Algoritmo: “conjunto de regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas” (Houaiss). Traduzindo: as mídias sociais aproximam iguais, formando grupos com mentalidades próximas denominados bolhas.

Oas membroas de uma bolha pensam que a sua bolha é o todo do mundo midiático. Só que não. O que sucede é que oa ativista de uma bolha tem interface, com incentivo algorítmico, com partícipes da mesma bolha, generalizando a “lógica” da sua bolha; crê que fora da sua bolha vivem estranhoas, suspeitoas, inimigoas.

Decorrem, daí, isolamentos ideológicos, resultando extremismo e paradoxos. Extremismo porque as ideias de um grupo não são ponderadas; antes, referendam-se a si próprias de forma tautológica (reverberação de um conceito). Num contexto dessa natureza, o que não coincide com a reserva mental da bolha é desqualificado.

Paradoxo porque as bases que sustentam uma posição por uma bolha não são aplicadas em posição equivalente se for do interesse de outra bolha. O discurso contra a corrupção, por exemplo, é o mesmo em qualquer bolha, contudo, se oa corruptoa for da “minha” bolha, elea será menos corruptoa que oa corruptoa da bolha alheia.

Nisso, se justifica qualquer absurdo. Dado que absurdo não tem alicerce, criam-se fake news. Bolhas não solicitam provas, não recomendam sensatez. Bolhas requerem viseiras, ou seletividade no olhar os acontecimentos. Eis o nosso momento sociopolítico. Cada bolha se assegura de que a outra bolha não presta.

Sugiro: bote-se a si e à sua bolha em suspeição. Critique a sua formatação ideológica. Há você e as suas idealizações. Há, contudo, outras concepções da vida. Saia da bolha, de qualquer bolha, vá estudar, vá às ruas persuadir pessoas, legitimar ideias, catar votos para as futuras eleições. Karl Marx avaliza a sugestão.

* Léo Rosa de Andrade, doutor em Direito pela UFSC, psicanalista e jornalista

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