Domingo, 28 de abril de 2024

Resignados

Possivelmente você conheça a síndrome do elefante preso. Amarrados a cordas desde a infância, os elefantes, quando adultos, perdem a noção de sua força e permanecem fragilizados por algemas invisíveis. Estão confinados a um modelo mental que os desencoraja a fugir de suas prisões e assim, desconhecendo a sua própria força, se rendem ao destino que lhes é imposto. Se ardis como esse são utilizados para obter conformidade a regras no mundo animal, engenhos mais sofisticados são necessários para manter seres tidos como racionais em estado quase que permanente de servidão voluntária.

Assim como no caso dos elefantes, percebe-se na atual sociedade, que as mesmas algemas invisíveis continuam aquietando as insatisfações latentes e pouco expressas por parte dos oprimidos, dos esquecidos e dos humilhados, historicamente sem voz e vez. Agora, entretanto, soma-se a esse exército de invisíveis, também uma nova classe de trabalhadores, cujos vínculos empregatícios são tão frágeis quanto suas expectativas em relação ao futuro. Isso, por óbvio, configura uma perspectiva inédita no campo sociológico. O que houve com os grandes movimentos sociais? Para onde está sendo canalizada a força reivindicatória das massas? A sociedade cibernética, fragmentada e difusa abalou definitivamente o movimento sindical? O que está por trás dessa quietude?

Ao que tudo indica, há novos elementos a serem considerados nessa mudança de quadro. Quer seja para justificar um privilégio ou silenciar uma injustiça, a mente humana, notadamente de quem está no comando, tem a capacidade de laborar de tal sorte que haja sempre uma aparência lógica, um verniz de equilíbrio e justiça, nem que para isso tenham que ser invocados deuses de variados matizes ou até mesmo construções sociológicas de alta complexidade.

As tensões sociais modernas gradualmente adquirem novas feições, a maior parte fundada e matizada em um modelo de urbanização crescente, difuso e polifônico, com o adensamento das grandes metrópoles e aglomerados humanos, mais complexos e fragmentados em igual medida. A impermanência, as incertezas e as transformações tecnológicas reconfiguram, com notável velocidade, o presente e o futuro. Não há mais somente pão e circo para domar os ânimos, embora essa estratégia ainda esteja no arsenal de todo governante cauteloso. Hoje, a fome perdeu seu caráter revolucionário e o magnetismo das redes sociais tem mantido muitos perigosamente distraídos, inclusive dos seus próprios interesses.

O abismo entre quem tem muito e quem tem nada se agiganta sem que se criem mecanismos de maior equilíbrio. Mas até esse processo de acumulação desmedida de riqueza foi moralmente legitimado, sintetizado numa frase memorável de Max Weber, talvez o sociólogo mais brilhante do século passado: “Aos ricos, não basta a riqueza; é preciso que eles sintam que a merecem”. Aplacada a consciência, resta pouco espaço para maior generosidade e solidariedade. Assim, perde-se um ator vital no processo de concertação social. Na verdade, maior justiça social não pode prescindir da concorrência dos mais abastados, tampouco e principalmente admitir que despir-se de obrigação pelos infortúnios de terceiros possa ser moralmente justificável.

No polo oposto, empregos cada vez mais instáveis submetem as duas últimas gerações de trabalhadores a uma crescente precarização das relações de trabalho, tendo o parâmetro predatório e fugaz da “uberização” como novo paradigma. O mecanismo da greve perdeu força e a meritocracia passou a nortear e responsabilizar cada um por seu destino. Sem a força do coletivo, a busca por melhores condições de vida e trabalho deixam de ser uma responsabilidade de governos ou empresas e a emancipação do indivíduo também serve para enfraquecê-lo, enquanto consolida-se a lógica do capitalismo sem freios. Vencer o modelo mental de alienação deliberada em relação aos seus próprios direitos, exigirá uma reconfiguração das atuais forças que modelam as vontades, inclusive a de lutar por si mesmo.

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