Domingo, 19 de maio de 2024

A coragem de não ser atual

É de G.K. Chesterton a oportuna lembrança de que cada época é salva por um punhado de homens que têm a coragem de não serem atuais. Confrontada com a realidade vivida pelo Brasil, a frase adquire notável atualidade e denota o contraste entre a defesa emergencial da democracia e as manifestações em frente aos quartéis pedindo intervenção militar. Vistas somente como um modo caricato de expressão da liberdade, as formas fantasiosas de alienação e desapego democrático que ora presenciamos podem nos levar a conclusões insuficientes, senão falsas. A dissonância cognitiva daqueles que abraçam um conjunto de teses ilusórias como argumento para confrontar as instituições e a democracia do País, a exemplo das supostas fraudes nas últimas eleições e da ameaça comunista, converteu-se em munição para o desatino em curso. Nessa perspectiva, o ecossistema de desinformação gerado no seio das mídias digitais se revela bem mais insidioso e ameaçador do que somente a manifestação inofensiva de algumas velhas senhoras e aposentados em busca de distração. A amplificação da mentira em escala industrial contra a democracia é uma dura realidade a ser enfrentada, não sem antes reconhecer de que forma esse mecanismo opera e quais prejuízos têm potencial de causar. Essa realidade, portanto, não deve e não pode ser tratada com desdém ou indiferença, mas com a urgência real e imediata para a preservação dos fundamentos do estado democrático de direito. Não compreender isso é condenar o País ao desassossego e à instabilidade, inimigos mortais para quem deseja a prosperidade da nação brasileira.

Ciente da gravidade dos atuais ataques ao aparato legal constituído, o Judiciário se encontra na difícil missão de deslindar assédios frontais de parte da extrema direita brasileira e, simultaneamente, defender as instituições, mesmo ao custo de decidir sob indisfarçável desconforto questões que envolvem o delicado tema da censura, de tão triste memória em nosso País. Curioso nesse episódio dos cancelamentos das redes sociais de algumas autoridades e influenciadores digitais no Brasil são as reações que provocam, ou deveriam provocar e não ocorrem. Ao contrário, inclusive, vemos “garantistas” do quilate de um Lênio Streck silenciarem ou até apoiarem as decisões do Ministro Moraes. Essa postura, esse silêncio consentido, partindo de um constitucionalista como Lênio, ou de muitos outros juristas consagrados, deveria suscitar que há algo no ar além de aviões de carreira, como dizia o Barão de Itararé. Esse óbvio não captado por muitos, seja por implicância ideológica, seja por obtusidade intelectual ou má vontade mesmo, sugere, contudo, que a proteção da democracia posiciona-se hoje num patamar acima de veleidades ocasionais que a vaidade poderia reclamar, o que não é pouco, dado que até reinos naufragaram pelo capricho de seus imperadores.

Destaque-se que, nesse tormentoso momento institucional que atravessamos, a interpretação enviesada do que seja liberdade de expressão converteu-se em poderosa arma contra a própria democracia. Paradoxalmente, os mesmos que se arvoram como defensores intransigentes da liberdade, condenando eventuais cancelamentos ocorridos nas mídias sociais pelo Judiciário, são aqueles que, sem embaraço, defendem atalhos institucionais, a exemplo do apelo junto aos militares para que solapem a democracia à luz de uma interpretação torta da Constituição. Embora aberto, o debate sobre os limites da liberdade de expressão precisa avançar para um entendimento preliminar: não existe democracia sem instituições sólidas. O argumento de garantir ampla liberdade de expressão ao preço de colocar em risco a própria democracia, configura uma das mais flagrantes contradições dessa época marcada pela intolerância. Saber discernir quais são os limites da liberdade de expressão, dentro de um contexto marcado por discursos de ódio e ataque às instituições democráticas, converte-se no mais urgente clamor àqueles que demonstram valorizar a democracia como nosso único caminho para o pleno desenvolvimento e a paz social.

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