Domingo, 06 de outubro de 2024

A etiqueta da internet manda ser liberal no que recebemos, e conservador no que enviamos

As mudanças que a internet trouxe a nosso comportamento pessoal e às interações sociais mereceriam uma avaliação sociológica ampla e profunda. Se localizado na cronologia da rede, o tema não é novo. Por exemplo, no dia 18 de abril o domínio “.br” comemorará 35 anos de sua delegação. Se ele segue sólido, preservando os conceitos que o nortearam durante todos esses anos, a comunidade internet a que ele serve aumentou tremendamente e tornou-se muito mais diversa que o punhado de usuários acadêmicos de então. Quem nos repassou o “.br” foi Jon Postel, falecido em 16 de outubro de 1998, em seu papel de IANA – internet Assigned Numbers Authority (Vint Cerf escreveu o tocante RFC 2468 “I remember IANA” no dia seguinte à morte de Postel).

Postel também foi autor de um conselho que ficou conhecido como “a lei de Postel”: se queremos que a internet funcione devemos “ser liberais no que aceitamos receber, e conservadores no que enviamos”. Já era claro, portanto, que haveria algum tipo de lixo, provocações e ofensas, mas deveríamos resistir, e não retrucar na mesma moeda. Em 1995 a RFC 1855 tentava estabelecer um “código de conduta” que os usuários deveriam adotar para uma convivência saudável nas redes: era a “Netiquette”. Vale a pena uma revisita a essa RFC, que definia ações conforme o tipo de aplicação usada, desde correio eletrônico, conversa, transferência de arquivos, ou a então nascente web.

São menos de 30 anos desde a publicação da Netiquette, mas a mudança de comportamento que a rede apresenta é impressionante e assustadora. Relembro outra frase de Vint Cerf em 1999, quando disse que “os anos da internet são como ‘anos de cachorro´”, significando que, como acontece com os cães, um ano na rede equivaleria a 7 anos humanos, Bem, nesse caso, lá se vão 200 “anos de cachorro” da publicação da Netiquette…

O que teria feito nosso comportamento variar tanto? Certamente não seria a essência humana que mudou mas, talvez, nossa exposição tão aberta a bilhões de usuários e inúmeras e diversas comunidades tenha nos encontrado de “guarda baixa”, despreparados para o impacto. A pulsão que sentimos de nos posicionarmos em qualquer tema via rede (violando o conselho de Postel) gera interações nem sempre razoáveis e civilizadas. A revista Nature de 20 de março traz um estudo interessante sobre “Padrões persistentes de interação nas plataformas sociais, no decorrer do tempo”, e analisa uma dezena de plataformas, das atuais às já extintas (como Usenet, por exemplo), cobrindo mais de 30 anos.

O estudo examina a “toxicidade” e a “polarização” das interações em plataformas, e seus efeitos. Uma conclusão interessante que traz é que a “toxicidade é um resultado natural de discussões em rede, independentemente da plataforma usada”, e que “polarização” pode ter um efeito mais deletério sobre os usuários que a própria toxicidade. Examina formas de mitigar esses efeitos e leva a conclusões que poderiam ser bem aproveitadas ao se tentar definir formas de moderação em discussões que claramente deixaram de ser civilizadas. (Demi Getschko/AE)

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