Quinta-feira, 18 de abril de 2024

Famélicos e inclementes

Finais de ano são boas ocasiões para balanços sobre a vida e mergulhos introspectivos. Como a vida somente pode ser vivida olhando-se à frente, faz sentido também imaginar o amanhã, bem como buscar compreender que alavancas moverão o futuro, que ameaças merecem a nossa atenção e que posturas serão a nós reclamadas. É necessário, contudo, ir além dos interesses mais óbvios e imediatos. O nosso papel ultrapassa a condição de meros expectadores da nave vida, impondo-nos um urgente protagonismo. Esse ator participante deve descortinar uma experiência que extrapole o egoísmo narcisístico, e encontre no outro, seja ele quem for, o parâmetro necessário para revelar-se em comunhão, em interação social responsável. O gregarismo é nossa condição elementar para usufruir do pertencimento, da troca e das relações interpessoais, essenciais para a nossa própria identidade. Olhar para o outro, porém, vai muito além de um exercício retórico, autocentrado. Olhar para o outro implica abrir as portas do nosso coração para ser tocado pela dor alheia, pela comiseração sincera, por maior sensibilidade, pela compreensão de que nossa atitude poderá fazer parte de uma urgente mudança, ainda que insuficiente. Uma sociedade mais justa e solidária não pode prescindir desse protagonismo consciente e atuante. E é preciso dizer que não dá mais para ser feliz diante de tamanha iniquidade social, de tanta barbárie e indigência, onde famélicos e inclementes tragicamente se contemplam.

Finais de ano também servem para considerar o ambiente político e as relações de poder que nos cercam. Se reconhecemos a dor da fome, da violência, da miséria e da intolerância, devemos saber que isso não é necessariamente um destino. Se existem injustiças, se miseráveis perambulam entre nós, se a desigualdade social machuca nossos escrúpulos, se nossos valores democráticos estão em jogo, é preciso direcionar responsabilidades, particularmente quando as evidências de inépcia, desídia e irresponsabilidade estão na raiz dos problemas. Inauguremos o nosso inconformismo com o farol dos princípios. Eles são os esteios da vida em sociedade. Sem princípios, impera o engano, a mentira. Defendamos nossa liberdade, nossas instituições. Democracia pressupõe que todos os poderes coabitem, dialoguem e saibam conviver com as diferenças, com as contradições. O apelo autoritário hoje inequívoco é, a um só tempo, sedutor e covarde: sedutor, porque pressupõe que alguém proclame estar do lado certo da história, e que a verdade é seu domínio; covarde, porque anula o direito alheio, suprime-o, mesmo que à força. Atacar a democracia é fácil. Difícil, é defendê-la, argumentar, conceder, ouvir, exercitar a paciência e a empatia. Nem sempre o caminho mais curto é o melhor. Atalhos são perigosos, especialmente quando estão em jogo as nossas instituições.

Finais de ano ainda servem para reforçar nossa vigilância contra o abandono da luta contra a corrupção, contra o retorno da impunidade, contra a afrouxamento das leis de combate à improbidade, contra as promessas não cumpridas. Finais de ano devem estimular a consciência de que é inadiável fomentar maior respeito ao meio ambiente, às visões plurais, ao direito à saúde, à educação universalizada, de qualidade e para todos, de um País mais seguro, com menos preconceitos e com maior tolerância. Finais de ano deveriam nos encorajar a esperar mais de nossas lideranças públicas. Finais de ano deveriam nos remeter a um olhar mais severo sobre aqueles que abraçam e promovem a mentira, distorcem os fatos e são indiferentes ao grito dos desesperados, dos abandonados, dos enjeitados, dos excluídos. Enfim, finais de ano devem ir muito além do ritual, da tradição morna e muitas vezes insossa que não alimenta a mudança que clama. Que 2021, diante de tanta dor, de tantas perdas, tenha germinado junto à sociedade a semente de um País que tenha vergonha de separar os seus filhos entre perdedores e ganhadores, e de ver o futuro de milhões ser desperdiçado por incompetência e insensatez.

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